Demorei a exprimir esta memória, talvez à espera do equilíbrio de absorção necessária para relatar com frieza um episódio que transforma a nossa essência. Passaram-se cinco meses desde que terminou o pesadelo, poderiam ser cinco anos, que as imagens continuariam frescas na memória.
Era terça-feira de carnaval, nove da manhã, um acordar lento. A humidade do inverno enchia os pulmões, enquanto caminhava para o banho. Meia-hora depois, estava pronto para sair, não havia nada em casa para o pequeno-almoço. Abro a porta de entrada e um frio apodera-se de mim, sentindo-me encurralado, sabia que não havia solução. Dois guardas nacionais, estavam a abrir o portão e a encarar-me de frente: - Sabe porque estamos aqui? Sim, sei - respondi. Era inevitável e assim fui conduzido ao posto.
Enquanto tratavam da papelada burocrática, com argumentos solidários, que não fazendo sentido a sentença, eram obrigados a cumprir o mandato de captura. Deixaram-me avisar a minha mãe e amiga/advogada, do que se passava. Ambas vieram em meu auxilio. A minha mãe trouxe cigarros e um pão, para poder matar a fome que entretanto tinha-se desvanecido. Tentei manter a frieza necessária para delegar os recados urgentes e ao mesmo não transparecer o pavor que se apoderava de mim. Ia passar os próximos cinco meses da minha vida numa prisão.
Foi num abraço apertado que me despedi da minha mãe, reconfortando-a: - Eu consigo sobreviver a isto, não se preocupe. Entrei no carro da patrulha, sem olhar para trás, para quê verem o desespero que tomava conta de mim? A viagem foi feita numa marcha lenta interminável, contemplando o vazio, absorvido pelo sentimento de culpa e de perda.
À entrada no estabelecimento prisional , um declive escondido do resto do mundo, sou encaminhado para a secretaria, onde despi a alma e o corpo para uma inspecção. Encostado a uma parede, a foto de perfil para reconhecimento e a perda de identidade. A partir de agora, sou o 307, é esse o meu nome aqui. Um número, apenas mais um no meio de 800 e poucos. Terminado o exame corporal, um guarda conduz-me à ala. Abre-se a porta do inferno. Uma secretária em madeira solitária ao centro do espaço, sentado indiferente à minha chegada, jaze um guarda prisional na cadeira. Ao redor um gradão, onde se empoleiram um amontoado de caras de poucos amigos. O guarda levanta-se, enfia a chave no ferrolho e sou literalmente engolido por uma multidão com perguntas: de onde vens? o que fizeste? quanto tempo apanhaste? Dá-me um cigarro, dá-me já um cigarro! Os guardas, a dois passos, assistem à cena indiferentes, é um filme visto e revisto e para o qual já não têm interesse. - Dirija-se ao chefe de ala! Grita a voz de ordem. - Ali, vai ali, dizem os outros reclusos. Entro numa pequena sala, empurrado por uns quantos. Boa tarde - digo eu. Sem nunca levantar os olhos do papel, diz o chefe de ala, pegue o saco, tem aí a roupa. Não perca... já o encaminham para a sua cela. Arrasto o saco de plástico, juntamente com a minha dignidade, para fora da sala. Continuo a sentir empurrões, perguntas mil, ameaças, mas a minha alma não está ali. Balbucio palavras, que nem consigo reconhecer. O barulho agressivo é ensurdecedor.
Deparo com a degradação que será o meu espaço nos próximos 150 dias. Um cubículo 3x2m, paredes cobertas com resquícios de sangue, uma pequena mesa encostada a uma das paredes laterais. Do lado oposto, uma cama singular de ferro, pintada a tinta acrílica vermelho rubro, descascada do tempo e do uso, deixando transparecer a ferrugem da idade. Um contraplacado a fazer de estrado e um colchão de espuma com 5cm de altura, prenúncio de que dormir uma noite relaxada será um luxo inalcançável. À cabeceira, uma meia parede a servir de divisória para a casa-de-banho, onde mora uma sanita em inox sem tampo, respingada de urina seca, proclamando que nunca fora propriamente limpa. Um lavatório, também em inox, povoado de calcário e por cima um espelho, embutido na parede de azulejos, desfeito em cacos. O meu rosto reflectido no recorte dos cacos, apresenta as linhas de uma cara sem alma, onde o futuro deixou de existir, apavorado com o sentido de estar a pagar todos os erros de uma vida. De frente para a sanita, um espaço para duche quadrangular, com cerca de 50cm. Onde sobressaía o chuveiro partido, remendado com uma garrafa de plástico cortada, para ajudar o fluxo da água. Três barras na janela, de vidros partidos, não deixam esquecer que não se trata de um quarto mas de uma cela de prisão, onde terei de aprender a sobreviver como nunca antes tinha sido necessário.
Respirei fundo, engolindo todo o pavor em busca de uma réstia de coragem no fundo do saco de plástico. Retirei os lençóis, fronha, almofada e os dois cobertores. Fiz a cama, com toda a calma, pois o tempo era algo que não faltava e qualquer distracção servia para abstrair do barulho agressivo e ensurdecedor que se fazia sentir no corredor, esmagava estridentemente o meu espaço. O vento entrava violentamente pelos vidros partidos, sem pudor de não ter sido convidado, enregelando corpo e alma. Tiro os sapatos, enfiando o corpo na cama, com a mesma roupa com que entrara neste pesadelo. Em busca de um abrigo contra o frio e do medo impregnado na pele, o corpo treme. Fecho os olhos, numa réstia de esperança que ao reabrir os olhos, esta opressão termine e não passe de uma alucinação.
O barulho constante não permite que o sono tome conta de mim, tapo a cabeça com o cobertor. O corpo continua a tremer insistentemente com o gelo do meu abrigo e o vazio da alma. Como foi que cheguei aqui? A tinta do tecto descascado, assemelha-se a um monstro, o monstro que observa e ameaça engolir-me. Falo com Deus, falo com o meu anjo da guarda, penitencio-me, divago sobre o que preciso pedir ao exterior, sinto a mente a perder-se, agora entendo o significado de alucinações.
Não sei quantas horas passaram. Levanto, calço os ténis e arrisco olhar pelos vidros partidos da janela. O pátio está escuro, o chão repleto de carcaças e sacos de plástico, revolto ao vento. Do outro lado outras janelas, luzes, barulho, som de televisões. Volto a olhar-me ao espelho partido. Sim, ainda parece que sou eu que estou no reflexo.
Oiço as trancas abrirem, o restolho roda estridente ao virar da chave. Um guarda aparece e um recluso empurra uma marmita para dentro da cela. É o suposto jantar. Uma sopa, que assemelha-se a óleo sujo, que nem atrevo a tocar, uma maçã e uma massa com restos de carne. Pego nos meus talheres, que vinham no saco de plástico da roupa de cama, provo o jantar. Insonso, a massa revolve na boca com um sabor intragável. Não consigo, limito-me a comer a maçã. Fecho os tupperware, encosto ao canto, perto da porta e volto a deitar-me. Continuo a tremer, está muito, muito frio. Hora de voltar a esconder-me debaixo dos cobertores. O pensamento vai, o pensamento vem e o tempo passa, embalado pelo barulho abrupto que teima em não desaparecer. Pancadas nas portas vizinhas, fazem sobressaltar até ao raiar do dia.
Foi apenas o primeiro dia, de 150. Já só faltam 149.
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